História das Unidades de Medida e Sonda Espacial

Os problemas existentes com unidades de medidas diferentes ao redor do mundo ocasionaram em 1999 (numa época em que isso não deveria mais ocorrer) um grave problema com a sonda espacial Mars Climate Orbiter enviada a marte. A sonda se destruiu no espaço, e o motivo que a Nasa alegou foi que os diversos cientistas envolvidos utilizaram sistemas de unidades diferentes.

O texto abaixo foi publicado pela revista Veja 06 de outubro de 1999, e descreve isso e diversas curiosidades sobre o assunto. Entre [chaves]  , bold e vermelho estão algumas correções, complementos e destaques de informações feitas por mim.

Conta de maluco

Confusão de medidas derruba sonda espacial e mostra como é urgente esquecer pés e polegadas
por Marcos Gusmão

Gravuras francesas do século XVIII: primeiras tentativas de unificação métrica decimal estimuladas pelas ideias iluministas

A escola ensina que para qualquer operação que envolva padrões diferentes de pesos e medidas é necessário fazer a converso para um único sistema de unidade. Sem isso,  é confusão na certa. Na semana passada, a agência espacial americana, a Nasa, admitiu que um erro primário como esse pode ter sido a causa do desvio, e depois da perda, da sonda Mars Climate Orbiter, que custou 125 milhões de dólares. A nave foi enviada ao espaço para estudar o clima de Marte e espatifou-se ao entrar desastradamente na atmosfera marciana. Para o constrangimento dos cientistas americanos, a única explicação foi  a sonda ter recebido informações conflitantes dos controladores de vôo. Ou seja, ao se aproximar do planeta vermelho, foi abastecida de dados em metro e em quilograma, do Sistema Métrico Decimal, e também em pé e em libra, unidades do Sistema Imperial Britânico. A comissão de cientistas que investiga o caso acredita que os programas de computador da Nasa não foram capazes de detectar as diferenças entre valores expressos em dois sistemas.

ContadeMaluco-02O melhor time de navegadores espaciais do mundo acabou com uma nave caríssima por causa da teimosia dos Estados Unidos e de outros países de origem anglo-saxã em manter esse sistema de medidas criado há oito séculos e que já deveria ter virado peça de museu. “Somente o sistema métrico deveria ser usado”, diz Lorelle Young, a presidente da Associação Métrica dos Estados Unidos. “Ele é a língua de toda ciência sofisticada.” De fato, é inconcebível para uma cabeça adaptada ao sistema decimal a quantidade de cálculos necessária para trabalhar com medidas como polegadas, jardas e pés. A dificuldade de associação rápida é assombrosa. Um pé se divide em 12 polegadas. A jarda tem 3 pés e uma milha equivale a 1.760 jardas. Para responder quantas polegadas existem em uma milha sem fritar os neurônios só apelando de imediato para uma calculadora. São 63.360 polegadas. E em três quartos de milha? É melhor esquecer. Pelo sistema métrico, para se chegar a quantos centímetros existem em um quilometro,  é só pensar nas 100 subdivisões do metro e acrescentar mais os três zeros da milhar. O resultado: 100.000 centímetros em cada quilômetro. Em três quartos de quilômetro? Na ponta da língua: 75.000 centímetros.

Para abastecer o carro, o inglês e o americano pedem o combustível em galões e não em litros, bebe cerveja em pint e não em mililitro. Mede o peso em libra ou onça. Para a temperatura adota um estranhíssimo sistema com ebulição [da água] a 212 graus batizado como Fahrenheit e completamente diverso dos graus Celsius que o resto do mundo usa. Quando se leva em conta a origem do sistemas então, parece piada. Houve um tempo em que a jarda era a distância que ia do nariz à extremidade do braço esticado do rei no poder, senhor de todos os padrões. O pé era exatamente do tamanho do pé real e a polegada ia pelo mesmo caminho, vinculada ao dedo do soberano. Hoje não é assim, óbvio. A polegada não é o dedo da rainha Elizabeth II, mas sim 2,5 centímetros [aproximadamente]. Para se chegar à jarda também não é preciso medir o braço real: fechou-se a questão em 91,4 centímetros. E o pé, então, é uma lancha de 30,4 centímetros, que claramente não corresponde às dimensões do pé de sua majestade.

Mars Climate Orbiter: descompasso entre metros e pés derrubou a sonda. Foto: Nasa

Os padrões do chamado Sistema Imperial Britânico foram adaptados ao sistema métrico para poder funcionar como medidas modernas. “Mesmo com os ingleses mantendo os conceitos antropomórficos [ou seja, com base em comprimentos do corpo humano], o metro e as demais unidades do sistema decimal acabaram vencendo a batalha”, afirma Giorgio Moscati, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo e membro do Comitê Internacional dos Pesos e Medidas. E por quê? Porque o metro já nasceu com conceituação científica e filosófica e não apenas prática. Ele surgiu como uma unidade de medida física imutável, no caso, a décima milionésima parte da distância entre o Polo Norte e o Equador, medida pelo meridiano que passa por Paris. Foi um produto do iluminismo francês, para acabar com as medidas arbitrárias da Antiguidade e da Idade Média ainda em vigor no século XVIII. E até se sofisticou. Hoje ele  é calculado com base no espaço percorrido pela luz no vácuo em determinado período de tempo, o que permite uma calibragem de instrumentos com preciso indiscutível.

O problema é que, por motivos culturais diversos países, entre eles a maior potência do planeta, relutam em abrir mão de suas medidas arcaicas. O que foi disputa entre as pretensões imperiais da França e da Inglaterra nos últimos dois séculos virou um problemão científico para o futuro, como prova a bobagem cometida pelos cientistas da Nasa na semana retrasada. “Não dá para trocar as medidas de uma hora para outra”, explica o professor Moscati. “Assim como a jarda é incompreensível para nós, o metro não passa de uma abstração para a maioria dos americanos e ingleses”, diz ele. O resultado  um conflito de comunicação entre metade do planeta que pensa de um jeito e o outro lado que pensa de outro, insustentável numa sociedade globalizada. Para resolver pendengas como essa, na próxima segunda-feira a Conferência Geral dos Pesos e Medidas se reúne mais uma vez em Paris, na França. Os especialistas discutirão exatamente quais são as maneiras de acelerar o processo de unificação que adotar definitivamente o sistema internacional de unidades, SI, que regulamenta o metro, o quilograma, o litro e os graus Celsius como padrões. “A unificação no padrão métrico decimal é inevitável”, afirma Moscati, que participará da reunião. Os Estados Unidos aderiram ao sistema internacional em 1959. Há quatro anos, por fora da União Européia, a Inglaterra resolveu dar adeus definitivo á velharia baseada em pés, polegares e narizes reais. Em ambos os países, o sistema métrico convive com o imperial, mas a maioria da população sé faz contas no estilo antigo. Por isso as trapalhadas como a ocorrida na Nasa. A confusão está longe de acabar.

FONTE:  http://veja.abril.com.br/061099/p_118.html

Publicidade